Tardígrado e saxífraga
para Marília Garcia
Essa é minha primeira visão todos os dias quando acordo: o gaveteiro branco da IKEA ao lado da minha cama ostentando o adesivo do Maradona comprado em Nápoles e o verso do William Carlos Williams: no ideas but in things.
Ideias só nas coisas.
Eu poderia passar horas falando do Maradona, mas vou me ater ao segundo melhor poeta do meu gaveteiro. O verso aparece em A Sort of Song, poema de 1944, e eu o entendo assim: tá legal, eu aceito o argumento – a interpretação é minha e, se eu quiser, o William Carlos Williams ouve Paulinho da Viola –, nada contra o simbólico, o teórico, o conceito, o espírito, enfim, as ideias, mas elas nunca aparecem como tais, nessa etérea forma fantasmal, mas só materializadas, encarnadas, conjuradas, nos objetos concretos do mundo empírico em que vivemos, ou seja, nas coisas. O mistério se projeta e se revela no anteparo do real: ideias só nas coisas.
Uma análise muito mais bonita e mais profunda desse poema está em Pensar com as mãos, coletânea de ensaios de Marília Garcia. O título do livro não é da autora, mas uma expressão do Godard. Pra mim, Pensar com as mãos é apenas outro jeito de dizer Ideias só nas coisas. Godard não faz uma separação entre O Cinema e o cinema ou entre o cinema e fazer cinema, fazer um filme: o discurso só existe no ato, assim como o silêncio invisível da língua só se ouve na fala e só se vê na escrita. Depois de Godard, o mantra de Glauber Rocha nem parece tão minimalista assim: pra que uma ideia na cabeça e uma câmera na mão, se basta uma ideia na mão, se basta pensar com as mãos?
Eu gosto dessa síntese entre intenção e gesto (abraço, Ruy Guerra), regra e prática, concepção e execução, método e técnica, mente e corpo, reflexivo e sensível, intelecto e tato ou, pra arrematar com Susan Sontag, hermenêutico e erótico. Archibald MacLeish disse a poem should not mean, but be e Marília Garcia, misturando Jacques Roubaud com Ana Carolina Assis, sentenciou: o poema diz o que ele diz dizendo. E, assim, se apropria da força e da resistência do tardígrado. O tardígrado é um ser tão feio quanto seu nome que, como explica Marília Garcia, consegue viver sob condições extremas graças a um mecanismo de desidratação. Inclusive, ele já foi enviado pro espaço e voltou de lá tirando onda, como se nada.
O livro de Marília Garcia está cheio de passagens que repetem de diferentes formas seu título tirado de Godard, Pensar com as mãos, e o verso de William Carlos Williams, Ideias só nas coisas. Esse achatamento entre o mental e o físico é o que aparece quando a autora diz lendo com os dedos; escrever com uma tesoura ou quando cita os versos de Adília Lopes Escrever um poema é como apanhar um peixe com as mãos ou Escrevo como quem puxa ou empurra uma pedra e não como quem voa. Por falar em pedra, o poema em que Williams defende as ideias só nas coisas traz uma palavra tão esquisita quando tardígrado: saxífraga, uma flor capaz de quebrar pedras.
Outros estranhos parentescos ligam os muitos nomes que citei até agora, como se esses autores fossem vasos comunicantes: Marília Garcia é especialista em Sylvia Plath. Na próxima terça-feira, dia 2 de outubro, vai fazer 69 anos que a poeta escreveu uma carta pra sua mãe com a frase que melhor traduz a unidade ideia-coisa, ou pensamento-mão: Everyday, one has to earn the name ‘writer’ over again, with much wrestling. Escrever não é o que somos, mas o que fazemos, com muito esforço, fracassando todo dia. Literatura não é o lugar em que estamos, mas um momento pelo qual passamos, um relâmpago, um lampejo, um peixe que tentamos pescar com as mãos, mas que sempre nos escapa. A coleção a que pertence o livro de Marília Garcia, aliás, se chama Errar Melhor, nome tirado dessas sábias palavras do coach Samuel Beckett: Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better. Seguindo com as coincidências, ao abrir o Pensar com as Mãos de Marília Garcia para escrever esse texto, encontrei dentro dele um bilhete do Arlanda Express, o trem que liga o aeroporto de Estocolmo ao centro da cidade, onde fica o quarto de hotel em que li esse livro. É da Suécia também que vem a IKEA, marca do gaveteiro que montei sozinho com minhas próprias mãos e onde colei o verso de William Carlos Williams, Ideias só nas coisas, e o adesivo de Maradona. Reparando bem, esse texto já começou errado quando eu olhei pro meu gaveteiro e decidi basear todo o meu argumento no verso de William Carlos Williams, e não no Maradona. Afinal, Dieguito entendeu melhor do que ninguém como, acima de tudo, é preciso saber pensar com as mãos.






Simplesmente excelente.